Agricultura e Meio Ambiente no pós-Covid19: o imperativo da sustentabilidade

Por Marcelo A. Boechat Morandi*

Resgatando o conceito de sustentabilidade, cunhado em 1987 no “Relatório Nosso Futuro Comum” da Comissão Brundtland, entendemos o desenvolvimento sustentável como aquele capaz de “atender as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”. Neste sentido, o relatório afirma que “o desenvolvimento sustentável requer que as sociedades atendam às necessidades humanas tanto pelo aumento do potencial produtivo como pela garantia de oportunidades iguais para todos”.

Mais recentemente, em 2015, houve o lançamento de outro marco que mostra a amplitude da sustentabilidade. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma coleção de 17 objetivos globais projetados para ser um “plano para alcançar um futuro melhor e mais sustentável para todos”. Os ODS, estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas trazem metas ambiciosas que devem ser alcançados até 2030, conhecida como Agenda 2030.

Sustentabilidade, portanto, não é um conceito abstrato. Ela se transforma em um ativo quando temos métricas adequadas que conjugam economia, meio ambiente e pessoas na mesma equação, onde o resultado é positivo para todos. É um imperativo, trazido à discussão pelas mudanças do clima que vivemos nas últimas décadas e acelerado pela recente, ainda em curso, pandemia que paralisou o mundo e mexeu com o status quo do planeta.

Na última reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, ficou muito clara a mudança de postura frente a estas questões. As palavras de Klaus Shwab, fundador do evento, de que o atual modelo econômico não é sustentável e vai ter que mudar para incorporar tolerância zero com a corrupção, proteção ao meio ambiente, uso ético de informações privadas e respeito aos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores repercute em todos os países.

Daqui em diante não podemos mais dizer que meio ambiente é apenas objeto de ativistas de diferentes espectros ideológicos, de onguistas ou de europeus. Ao contrário, os maiores líderes mundiais de negócios e investidores estão entendendo que a mudança é importante e urgente.

É questão de mercado, de negócio. É criar vantagem competitiva. E vale para todo tipo e tamanho de produtor. Envolve agregação de valor (certificações de origem, sequestro de carbono, manutenção da biodiversidade), construção de marca e imagem, conquista de consumidores, desde pequenos circuitos curtos de comercialização até os grandes mercados internacionais. E diz respeito também à própria sobrevivência e longevidade do negócio.

Então, sustentabilidade é algo concreto, mensurável, que pode ser construído e pode ser precificado. E entrou definitivamente na agenda da agricultura. É inexorável esse caminho. Estamos inseridos em mercados globais que exigem isso, e já temos consciência que não há outra forma de seguirmos adiante.

Temas como a intensificação produtiva sustentável, sistemas de produção de base ecológica, defesa sanitária, melhor uso de agrotóxicos, novos insumos derivados da biodiversidade, segurança dos alimentos, geração e pagamento por serviços ambientais, dentre outros, estão na agenda nacional e internacional. Todos estão de olho no Brasil. Somos um grande player neste jogo e nossos movimentos serão sempre monitorados com lupa.

O caminho percorrido

Se no passado o aumento da produção era baseado na ampliação de área sem maior preocupação com as consequências, hoje o crescimento da agricultura e pecuária está pautado pelo ganho de produtividade e com preocupação ambiental. Assim, os avanços em produtividade garantem efeitos poupa-recursos, além de aprofundar a consciência ambiental dos produtores.

De fato, a agropecuária brasileira vem fortemente sendo beneficiada por tecnologias próprias para o mundo tropical, desenvolvidas especialmente a partir da década de 70, que teve como marco a fundação da Embrapa, em 1972. Desde então, com o fortalecimento da ciência voltada para a agricultura, o país passou a experimentar crescimentos extraordinários impulsionados por ganhos de produtividade por hectare. Nestes quase 50 anos, e mais intensificado nas últimas três décadas, a área plantada com grãos cresceu 61 % no país, enquanto a produção aumentou 312%, cinco vezes mais.

Para exemplificar segue uma simples conta: se tivéssemos mantido a produtividade média por hectare que o país tinha em 1990, seriam necessários mais 95 milhões de hectares para colher a safra obtida em 2016/17. Em outras palavras, poupamos estes 95 milhões de hectares de florestas ou cerrados do desmatamento para fins de uso agrícola. Hoje a safra de grãos do país ultrapassa os 250 milhões de toneladas, enquanto o uso da terra gira em torno de 29% do território nacional para produção agropecuária, aqui incluindo além dos grãos, frutas, hortaliças, culturas perenes, culturas energéticas, fibras e produção de proteína animal. É, portanto, imenso o potencial de crescimento do agronegócio brasileiro. Em todos os casos, a área plantada cresceu menos do que a produção, poupando mudança maior de uso da terra.

Temos um arcabouço legal e de políticas públicas robusto. Não podemos deixar de citar aqui exemplos que conversam diretamente com a agricultura: Plano Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC), a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), o Programa Nacional de Solos do Brasil (Pronasolos), o Programa de Bioinsumos, o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC) a Lei de Pagamentos de Serviços Ambientais em construção no Congresso, a ratificação do Acordo de Nagoia sobre biodiversidade e outros marcos importantes. Sem, é claro, esquecer do Código Florestal Brasileiro, que mesmo ainda carecendo de plena implementação é um marco sem igual em nenhum outro país e que nos permite ter APP e Reserva Legal convivendo com a área produtiva dentro de cada fazenda do país.

Temos que reconhecer que, para além destes acertos, cometemos erros no passado. E ainda alguns perduram no presente. Como consequência, existem hoje no Brasil cerca de 50 milhões de hectares de áreas degradadas. Mas, essa área já antropizada e de baixa produtividade pode ser um grande trunfo para a transformação. Temos um forte “ecossistema” de geração conhecimentos, tecnologias e inovação que podem tornar essas áreas produtivas e, assim, multiplicar a produção de alimentos, fibras e bioenergia sem necessidade de avançar sobre qualquer vegetação nativa.

Um exemplo que podemos tirar do projeto MapBiomas – uma rede brasileira de 15 instituições de pesquisa que mapeou todas as mudanças no uso da terra no Brasil desde 1985 até 2017 – é o que ocorreu no estado de São Paulo. A área de cultivo agrícola dobrou desde 2000, crescendo essencialmente sobre as pastagens sem que o Estado diminuísse a produção pecuária. Com isso, a Mata Atlântica cresceu. São Paulo hoje tem mais floresta, mais agricultura e mais boi. Isso permite tratar a sustentabilidade como negócio, aumentando a produção, a produtividade e a renda, agregando valor e fortalecendo a imagem do agronegócio.

O papel de cada um e de todos

A sustentabilidade só é possível quando todos os atores estão envolvidos em todo o “ciclo de vida” da geração de riqueza. Isso inclui desde aqueles que estão antes da porteira como as indústrias de insumos e máquinas, seguido daqueles diretamente envolvido nos sistemas produtivos dentro da porteira, bem como os distribuidores e consumidores – que hoje são agentes de mudança fundamental, assumindo protagonismo crescente na regulação de mercados, especialmente de alimentos. Inclui também, de forma transversal ao longo de toda essa cadeia, os agentes públicos (governos), responsáveis pela regulação dos sistemas e geração de políticas públicas efetivas e, finalmente, as organizações públicas e privadas de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), responsáveis pelo desenvolvimento de tecnologias e conhecimentos que irão alimentar todo o ciclo.

É claro que temos desafios enormes pela frente e não é sem esforço e, às vezes, com conflitos de ideias e interesses que vamos ter que avançar. Mas há uma certeza: qualquer novo padrão tecnológico na agricultura terá que se nortear pela consolidação de sistemas de produção limpos, com balanço positivo de carbono, que integrem as cadeias, promovam a inclusão produtiva e gerem e remunerem as externalidades positivas.

O acelerado avanço das tecnologias da informação e de comunicação, com a proliferação das mídias sociais e plataformas digitais, está modificando radicalmente as relações entre empresas produtoras de alimentos e os consumidores. Maior acesso a computadores e celulares, internet de baixo custo e Wi-Fi estão propiciando aos consumidores grande acesso à informação e compartilhamento de experiências e avaliações de produtos e marcas, que ampliam seu poder na tomada de decisão no momento da compra. As mudanças indicadas pelos consumidores estipulam que a produção de alimentos precisa atender a distintos atributos: sensorialidade e prazer, saudabilidade e bem-estar, conveniência e praticidade, confiabilidade e qualidade e sustentabilidade e ética.

A prática, não só o discurso, de uma agricultura sustentável não é mais uma opção, mas sim uma necessidade imperativa para aqueles que querem permanecer no negócio e para agregar aqueles, especialmente pequenos, que ainda estão fora do mercado.

Portanto, há espaço para ampliar a produção e a conservação. E reforço: produzir, crescer e preservar tem que ser uma relação ganha-ganha-ganha. O Brasil está pronto para ser o maior produtor mundial de alimentos em bases sustentáveis. Depende de como vamos usar todos esses recursos naturais, tecnológicos e sociais que temos. Há oportunidades se abrindo para todos os tipos e tamanho de propriedade desde a agricultura de base ecológica até grandes sistemas produtivos. O grau de dificuldade de inserção neste conceito de sustentabilidade depende da situação da propriedade, do acesso a conhecimento e tecnologias e, obviamente, da capacidade de investimento e expectativa de retorno.

O mundo e as oportunidades pós Covid-19

Como já apontado por vários especialistas, o mundo pós-pandemia será dominado pela combinação de três “S” – Saúde, Sanidade e Sustentabilidade.

Isso está alinhado com o que afirma Jeffrey D. Sachs, diretor do SDSN (Sustainable Development Solutions Network) sobre o recém divulgado relatório Sustainable Development Report 2020: “os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são necessários mais do que nunca. Seus princípios fundamentais de inclusão social, acesso universal a serviços públicos e cooperação global são as diretrizes para combater a Covid-19, bem como para a recuperação liderada por investimentos que o mundo deve adotar para superar crise econômica causada pela pandemia.

O relatório deste ano se concentra na luta de curto prazo para vencer a pandemia Covid-19, enfatizando a importância das estratégias de saúde pública e nas transformações de longo prazo para guiar a fase de recuperação. Como mostra o relatório, houve um claro progresso nos ODS antes da pandemia. Com políticas sólidas e forte cooperação global, podemos restaurar esse progresso na próxima década”.

Todos investimentos de agora para frente serão avaliados também – e talvez até como critério sine qua non – pela sua capacidade de geração de desenvolvimento sustentável. Um exemplo recente no Brasil foi o anúncio de um road map para investimentos em Agricultura Sustentável (Destravando o Potencial de Investimentos Verdes para Agricultura no Brasil) em uma parceria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Climate Bonds Initiative (CBI). O plano apresenta vertentes para investimentos que vão desde o estabelecimento de ações de regularização ambiental (PRA, derivado do Código Florestal), passando pelo desenvolvimento de bioinsumos para a agricultura, sistemas de produção pecuária sustentável como os processos de ILPF, energia renovável e biocombustíveis, florestas, até investimentos em infraestrutura de transporte e logística de baixa emissão de carbono.

Uma preocupação que o Brasil precisa ter é a geração e inserção de dados atuais em fóruns e bases internacionais, que permitirão assegurar ao país maior confiabilidade e credibilidade nos mercados e na elaboração de inventários e avaliações de impacto, como por exemplo em análises de ciclo de vida, pegadas ambientais de carbono e hídrica, entre outros. Muitos destes critérios hoje se configuram como barreiras não tarifárias para inserção em mercados internacionais e para investimentos.

Assim, a geração de dados confiáveis e com credibilidade internacional é essencial para garantir a competitividade de nossa agropecuária e desmistificar dados errôneos ou parciais e para corrigir erros de rumo interno em nossas políticas públicas e iniciativas tanto de governo quanto do setor produtivo.

Já provamos que produzir e preservar é possível. Em 2030 podemos ser o maior produtor mundial de alimentos e ao mesmo tempo ser um país com imensa área preservada, a maior do mundo tropical. Para isso, precisamos valorizar nossa agricultura, melhorar a imagem do país no cenário internacional e investir na diversificação dos sistemas produtivos, fortalecer as cadeias de valor, viabilizar estratégias de pagamento por serviços ambientais e investir na formação profissional. Podemos e devemos zerar o desmatamento, acabar com a ocupação ilegal de terras públicas, defender as áreas protegidas e aprofundar os ganhos de produtividade.

“A sustentabilidade é uma jornada, não um episódio”, como afirmou Tensie Whelan, diretora do Centro de Sustentabilidade da NYU Stern School of Business. Mas, trilhar essa jornada só é possível com conhecimentos e tecnologias que permitam o melhor uso dos nossos recursos naturais. E para pavimentar esse caminho é necessário investir de forma consistente. Esse foi o combustível que nos trouxe até aqui e que pode nos levar mais adiante, de forma competitiva. Tomo a liberdade então de acrescentar um quarto “S” às prioridades para a pós-pandemia: Science – aqui em inglês, denotando também sua universalidade. Esse quarto elemento que é transversal às dimensões de Saúde, Sanidade e Sustentabilidade nos permitirá alcançar os almejados objetivos. Nenhuma nação se sustenta no longo prazo sem investir em ciência.

As regras do jogo estão postas. Teremos uma nova oportunidade para mostrar vantagem competitiva após a saída do safety car, que recolocou todos os competidores na mesma volta – quem, como eu, é fã de F1 entenderá! Resta saber se vamos aproveitar esta relargada para consolidar o Brasil como a potência agroambiental que podemos ser. Temos que fazer as escolhas certas.

*Marcelo A. B. Morandi é engenheiro agrônomo, mestre e doutor em Agronomia/Fitopatologia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), pesquisador e chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente.

Crédito: Foto/Arte: Dudu Rosa