Amazônia – a pior das extinções

Por Evaristo Eduardo de Miranda*

Os pequenos agricultores são a espécie mais ameaçada na Amazônia. São pecadores, abandonados pelo poder público, vítimas das iniciativas de “desantropização” de ambientalistas, tratados como grileiros e bandidos em campanhas de parte do agronegócio, enquanto o Código Florestal favorece a grande empresa rural na Amazônia, em detrimento da agricultura familiar. E acabam de receber a condenação espiritual de suas práticas agrícolas no Sínodo da Amazônia. Mais de 5 milhões de pessoas sobrevivem há décadas nessas florestas equatoriais. E se perguntam: Unde veniet auxilium meum?

Uma análise conjugada dos dados geocodificados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) com os do Censo Agropecuário de 2017 e dos assentamentos agrários do Incra permitiu aos pesquisadores da Embrapa Territorial estimar quantos agricultores vivem hoje no bioma Amazônia. São mais de 815 mil produtores, dos quais mais de 89% são pequenos agricultores.

Em área, cerca de 12,8% do bioma Amazônia está ocupado pela agropecuária. Pastagens nativas, plantadas e manejadas alcançam 10,5%, ou 44.092.115 hectares. Lavouras anuais e perenes somam 2,3% ou 9.658.273 ha. As infraestruturas viárias, urbanas, energético-mineradoras e outras ocupam 1% do bioma, no mapeamento da Embrapa Territorial.

A produção rural do bioma Amazônia é irrelevante para as exportações e o PIB. Apenas 0,5% da produção nacional de cana-de-açúcar, menos de 2% do algodão e da laranja e 5% do café estão no bioma. Milho e soja representam 7,6% e 9,8% da produção nacional. Mas esses alimentos são fundamentais para abastecer 500 cidades amazônicas de frutas, leite e derivados, ovos, grãos, hortaliças e outros produtos. Quando trazidos de outras regiões, seu custo é altíssimo.

Já a vegetação nativa, hoje recobre 84,1% do bioma Amazônia, ou 353.156.844 ha. Estão aí incluídas formações florestais, não florestais e mistas, de acordo com cálculos da Embrapa Territorial, baseados em dados de satélites, do Inpe, CAR e TerraClass. As grandes superfícies hídricas representam 2,1% do bioma, ou 8.818.423 ha. Somados, os ambientes predominantemente naturais, de vegetação nativa e superfícies hídricas, abrangem 86,2% do bioma Amazônia.

Quantos agricultores desmatam no bioma Amazônia? Menos de 4%. Mais de 96% não estão envolvidos no processo. Em 2018 houve nas áreas rurais do bioma 28.862 desmatamentos, de tamanho variável. Eles contribuíram para o total de 7.094 km2 desmatados, segundo dados do Inpe. Mesmo numa hipótese maximalista, em que cada desmatamento tivesse sido feito por um produtor diferente, isso envolveria 3,5% dos agricultores.

E quantos agricultores praticam queimadas no bioma Amazônia? Mais de 80%. Os povoadores europeus aprenderam essa técnica do Neolítico com os indígenas. Desde antes do Descobrimento se praticam queimadas agrícolas. Nada houve de excepcional na Amazônia em 2019. Como sempre, os agricultores usaram fogo para renovar pastagens, combater carrapatos, eliminar restos culturais, abrir capoeiras, fertilizar solos com cinzas. Tecnologias para substituir queimadas custam caro: mecanização, adubos e pesticidas. Onde são adotadas, o fogo regride. Alguém no planeta quer financiar o acesso a tais alternativas para os pequenos produtores rurais amazônicos?

Quanto à ilegalidade ou legitimidade, vale consultar um pouco a História. Em cerca de 50 anos, os governos estabeleceram 2.405 assentamentos agrários no bioma Amazônia e lá instalaram 521 mil famílias. A maioria segue sem o título de propriedade de seu pequeno lote. Como obter financiamento sem regularização fundiária? Como solicitar autorização de desmatar para plantar mandioca? Mesmo quem se desloca até a cidade e insiste em solicitar, respeitando as exigências do Código Florestal, não recebe. Multados, os agricultores perdem acesso ao Pronaf. Estão no fundo do poço. Mas urbanoides exigem que saiam do buraco sozinhos e de forma “sustentável”!

Se estivessem nas cidades, os pequenos agricultores fariam parte da economia informal, como cabeleireiros, quituteiras, entregadores, vendedores de balas nos semáforos. Há décadas, políticas públicas buscam reduzir a informalidade de prestadores de serviço facilitando os impostos, a criação de microempresas. No campo, organizações do agronegócio exportador, em face dos recentes tumultos amazônicos virtuais, tratam todos de ilegais, grileiros, invasores, sobre quem deveria incidir o rigor da lei. Simplismo e crueldade, sem separar joio e trigo.

Os agricultores familiares da Amazônia não são empresários ou investidores rurais, modelos de sustentabilidade com capital e marketing (green wash). Os pequenos precisam de assistência técnica, extensão rural, associações e cooperativas, acesso à informação, novas tecnologias e circuitos de comercialização. Devem ser apoiados, e não criminalizados por discursos fáceis de quem vive nas cidades.

Sem espaço na agenda multiculturalista da esquerda, os pequenos agricultores não têm direitos nem lugar. Órfãos de pai e mãe, não há quem os defenda, na terra ou nos céus. Na abertura do Sínodo da Amazônia, do qual não participaram, o papa vaticinou: “O fogo causado por interesses que destroem, como o que devastou recentemente a Amazônia, não é o fogo do Evangelho”. Estão condenados.

Enquanto o leitor percorre este artigo, famílias rurais cuidam de plantações, bezerros, armazenagem e reparos de cercas. Do Acre ao Amapá, de Roraima a Rondônia, do Amazonas ao Pará. Os pequenos agricultores fizeram do Vietnã socialista o segundo produtor mundial de café, à frente da Colômbia. Resilientes, os pequenos agricultores sobreviveram ao leninismo, stalinismo, maoismo, capitalismo e outros ismos. Na Amazônia são exemplos humildes de resistência, re-existência, apesar da demonização urbi et orbi de seus meios de sobrevida. Produzem o que comem. Não serão extintos.

*Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em ecologia, é pesquisador da Embrapa