RECICLAGEM E AGROPECUÁRIA LIXO ZERO

A economia circular cresce no agro brasileiro. É raro caminhões de lixo coletarem algo em fazendas, unidades de produção de papel e celulose ou usinas de cana. A meta é o lixo zero

Muitos produtos industriais derivam ou têm em sua composição cascos e chifres bovinos: colágenos, adesivos, xampus, condicionadores, plásticos, laminados, papel de parede, madeira compensada, adubos, rações animais etc. Aqui, os bois têm quatro patas e o país produz mais de 120 milhões de cascos por ano. São cerca de 30 milhões de bovinos abatidos. É muito casco! Chifres e cascos são apenas extremidades dos bovinos. Ainda há o resto.

Gado da raça nelore | Foto: Shutterstock

A gordura e o sebo bovino, por exemplo, entram na fabricação industrial de chicletes, velas, detergentes, amaciantes de roupas, desodorantes, espumas de barbear, giz de cera, perfumes e cosméticos, cremes e loções, pinturas, vernizes, impermeabilizantes, cimentos, cerâmicas, plásticos, explosivos, fogos de artifício, fósforos, fertilizantes, anticongelantes, isolantes, linóleos, borrachas, têxteis, medicamentos, óleos, lubrificantes e biodiesel.

Do biodiesel presente nas bombas dos postos, abastecendo carros, ônibus, utilitários e tratores, cerca de 20% são produzidos a partir de sebo bovino. O resto vem essencialmente do óleo de soja. Boa parte dos frigoríficos brasileiros possui unidades produtoras de biodiesel. É um combustível renovável, sem compostos sulfurados (não contribui para chuva ácida) ou aromáticos (tóxicos e cancerígenos), menos poluente e mais sustentável.

Foto: Shutterstock

A pecuária brasileira segue a lei da conservação de massa de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Do boi nada se perde ou é descartado como lixo. São dezenas de destinos industriais. Tudo é recuperado: cascos, pelos, vísceras, ossos, sangue, chifres, couro, sebo e gorduras. Além da carne, é claro.

Fontes: Associação Brasileira de Reciclagem Animal (Abra), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat)

E nem só de subprodutos de origem bovina vive a indústria da reciclagem animal. O Brasil abate por ano mais de 6 bilhões de frangos. Quase um frango para cada habitante do planeta. Em média, de cada frango abatido, 28% não são utilizados no consumo humano. Penas, vísceras, cabeças, unhas e outros resíduos são matéria-prima para a indústria de reciclagem animal e transformados em farinhas, ração e óleos de origem animal. O mesmo ocorre com os resíduos de 53 milhões de suínos abatidos por ano e com cerca de 850.000 toneladas de peixes (vísceras e escamas).

Criação de frango caipira | Foto: Shutterstock

A indústria de reciclagem animal brasileira processa 100% dos resíduos de abate coletados de frigoríficos e açougues. São mais de 13 milhões de toneladas anuais. Eles dão origem a 5,6 milhões de toneladas de farinhas e gorduras, além de hemoderivados (hemoglobina e plasma em pó), aromatizantes e proteínas hidrolisadas, segundo a Associação Brasileira de Reciclagem Animal (Abra).

Esses produtos de alto valor nutricional são ingredientes em rações para suínos, aves, peixes, cães e gatos, aqui e no exterior. E, em parte, retornam ao sistema produtivo. A hemoglobina em pó, por exemplo, tem alta digestibilidade (95%), elevados níveis proteicos (87%) e excelentes teores de aminoácidos essenciais, como lisina, histidina, leucina e isoleucina. Envolvidos em diversos processos metabólicos, eles previnem a catarata em salmões na aquicultura. Com elevados níveis de ferro, a hemoglobina é totalmente misturável em água e atua como um potente palatabilizante em rações para suínos, cães, gatos, peixes e camarões.

Ração animal | Foto: Shutterstock

Dezenas e dezenas de produtos utilizados no cotidiano dos brasileiros têm origem na reciclagem industrial de resíduos de origem animal. Em inglês, essa reciclagem criativa da agropecuária não é chamada de recycling, e sim upcycling: gera novos empregos, mais riqueza e melhores serviços.

A economia circular está operacional e cresce no agronegócio brasileiro. É raro caminhões de lixo coletarem algo em fazendas, unidades de produção de papel e celulose, suco de laranja ou usinas de cana-de-açúcar. A meta da agropecuária é o lixo zero. Como em ecossistemas naturais, onde não há lixo. Tudo é reciclado. No setor canavieiro, o caldo da cana é transformado em açúcar e/ou etanol; o bagaço é utilizado na geração de energia e bioeletricidade em caldeiras; a vinhaça é distribuída como fertilizante nos campos, assim como a torta, os resíduos das filtragens e outros. Existe ainda a geração crescente, a partir da vinhaça, do biogás e do biometano.

Colheita de cana-de-açúcar | Foto: Shutterstock

O gás biometano pode atender a várias demandas industriais, como a da fabricação de fertilizantes. Ele pode substituir o gás de origem fóssil na fabricação de amônia e o óleo diesel em motores híbridos (diesel e gás). Esse gás da cana é um combustível renovável, alternativo ao gás encanado convencional, em grande parte importado da Bolívia. O município de Presidente Prudente é o pioneiro em distribuir biometano encanado para os moradores. O mercado do biometano renovável é muito promissor.

Além da busca do lixo zero no processo produtivo, a preocupação com o correto destino das embalagens plásticas de defensivos agrícolas usadas no campo mobilizou a cadeia produtiva, desde o fim da década de 1980. As experiências e os debates evoluíram até a aprovação da Lei Federal nº 9.974, em 2000, e a criação do Instituto Nacional de Embalagens Vazias (inpEV), em dezembro de 2001.

O inpEV, entidade sem fins lucrativos com sede em São Paulo, integra o Sistema Campo Limpo e é o grande responsável pela operacionalização da logística reversa das embalagens em todo o país. Integram o inpEV mais de cem empresas fabricantes de defensivos agrícolas e entidades do setor.

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O manejo e a destinação ambientalmente corretos das embalagens vazias de defensivos agrícolas têm como regra as responsabilidades compartilhadas entre todos os agentes da produção: agricultores, canais de distribuição e cooperativas, indústria e poder público.

Hoje, os usuários de defensivos agrícolas lavam, inutilizam (furam e cortam) e devolvem as embalagens vazias aos comerciantes. Estes indicam o local da devolução da embalagem pós-consumo, mantêm esses locais e comprovam o recebimento. Os fabricantes se responsabilizam pela logística e pela correta destinação, conforme o tipo de embalagem. E o poder público licencia as unidades de recebimento e fiscaliza todo o processo.

Na agropecuária brasileira, resíduo não é lixo. É matéria-prima industrial e oportunidade de criação de novos produtos.

O Sistema Campo Limpo conta com 411 unidades de recebimento de embalagens vazias (99 centrais e 312 postos). Além disso, mais de 4,1 mil recebimentos itinerantes completam a capilaridade do sistema de coleta e facilitam a entrega para agricultores em áreas mais distantes das unidades fixas de recebimento.

Cerca de 1,7 mil profissionais participam direta ou indiretamente do Sistema Campo Limpo e 273 colaboradores integram o inpEV. A ecoeficiência do sistema é significativa. Entre 2002 e 2020, a energia economizada foi equivalente ao necessário para abastecer 5 milhões de casas durante um ano ou para um caminhão fazer 15 mil viagens em torno da Terra. Em termos de emissões evitadas, o período totalizou 823 mil toneladas de CO2.

A mobilização constante e o engajamento de cada um desses agentes ajudaram a tornar o Brasil uma referência mundial em logística reversa de embalagens vazias de defensivos agrícolas. Em 2021, 53,5 mil toneladas de embalagens vazias foram corretamente coletadas e destinadas. Ou 94% das embalagens plásticas primárias comercializadas no Brasil são destinadas corretamente pelo inpEV. Um recorde mundial.

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A França, segundo melhor desempenho mundial, não passa de 77%. Segue o Canadá, com 73%. Estados Unidos ocupam o nono lugar no ranking, com 33%. Muitas indústrias brasileiras de defensivos operam em ciclo fechado: recebem anualmente a mesma quantidade de plástico reciclado para utilização na confecção de suas embalagens. Outra parte desse plástico reciclado é destinada à indústria de mangueiras, condutores etc. Das embalagens destinadas, 95% são reciclados e apenas 5% incinerados.

A reciclagem de embalagens na agropecuária proporciona benefícios ambientais diretos, reduz a geração de resíduos sólidos e a emissão de gases de efeito estufa e poupa energia na fabricação de novos produtos.

A qualidade de vida urbana melhorou com as medidas aprovadas pelo governo federal nos últimos três anos para impulsionar a reciclagem e a logística reversa. Quem se interessa pelo tema precisa conhecer os avanços recentes do Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos (Sinir+). E, em particular, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos e o novo Certificado de Crédito de Reciclagem (Recicla+!).

Lixão em Afuá, na Ilha de Marajó | Foto: Shutterstock

Na agropecuária brasileira, resíduo não é lixo. É matéria-prima industrial e oportunidade de criação de novos produtos, gerando mais empregos e renda. É preciso e possível melhorar e avançar neste tema ambiental. Como na preservação da água e da vegetação nativa, o campo já tem muito a ensinar.

Plantação de café em Minas Gerais | Foto: Shutterstock

Fonte: Revista Oeste / Por: Evaristo de Miranda