Desafios e benefícios de um sistema de rastreabilidade individual de bovinos no Brasil

Monitoramento de fornecedores indiretos, maior fluxo de informações, transparência e qualificação da carne brasileira são algumas vantagens potenciais desse mecanismo

A rastreabilidade individual dos animais é praticada em diversos países, visando ao monitoramento do rebanho para uma ou mais finalidades, como controle sanitário ou compliance ambiental. A Austrália e o Uruguai são frequentemente citados como exemplos de modelos de rastreabilidade decorrente de esforços públicos e privados. Em ambos os países, a carne produzida destina-se a mercados denominados “de qualidade”. Outro aspecto que difere esses mercados da realidade brasileira refere-se à dimensão tanto territorial quanto do tamanho dos rebanhos, que são pouco comparáveis com o contexto nacional.

O Brasil criou um sistema de rastreabilidade em 2002 para atender às exigências internacionais motivadas por ocorrência sanitária na União Europeia, a encefalopatia bovina espongiforme (EBE ou BSE), também conhecida como mal da vaca louca. A ocorrência em diversos países do bloco levou ao aumento de restrições sanitárias e a exigências de informações de origem nas importações. Assim, o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (Sisbov) foi criado por meio de Instrução Normativa do Ministério da Agricultura e Pecuária. No entanto, a adesão ao sistema não é obrigatória a todos os produtores, apenas para os que exportam para a União Europeia. O Sisbov não foi amplamente adotado em razão do seu alto custo e da necessidade de qualificação para operá-lo.

Além da questão sanitária que emergiu nos anos 2000, as questões ambientais começaram a fazer parte dessa pauta a partir das discussões sobre o controle do desmatamento no final da mesma década. Entre compromissos públicos e privados, os termos de ajustamento de conduta (TAC) surgiram para inibir as irregularidades ambientais, especialmente relacionadas ao desmatamento ilegal. Nesse sentido, parte da cadeia da pecuária de corte estabeleceu critérios para o cumprimento dos TACs, por meio do Compromisso Público da Pecuária, como a observância do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a ausência de embargos nas propriedades fornecedoras. O intuito é o monitoramento e controle da cadeia, uma vez que é possível averiguar eventuais irregularidades sobre as áreas georreferenciadas e cruzar com dados de trânsito animal por lotes (GTA).

Ainda que a criação desses instrumentos tenha promovido algum nível de mudança na cadeia, inibindo ações de ilegalidade, o monitoramento por meio de GTA e CAR favorece apenas o fluxo de informações sobre fornecedores que realizam o ciclo completo. Além disso, esses documentos são autodeclaratórios e não necessariamente verificáveis pelo governo com a agilidade necessária. Os pecuaristas de cria ou recria, denominados fornecedores indiretos, em geral, localizam-se em regiões de maior risco ambiental, detêm rebanhos menores e reduzidos meios para investimentos em infraestrutura geral e conectividade.

Rastrear e monitorar individualmente animais de fornecedores diretos e indiretos tem benefícios como garantias sanitárias, controle de trânsito animal, transparência e compliance legal. O conhecimento desse fluxo de informações da população bovina brasileira é como ter um CPF de cada animal, tornando possível o controle transacional. Ao mesmo tempo, tal mecanismo expõe aspectos sanitários e ambientais, levando ao direcionamento de recursos necessários para regularização legal. Nesse contexto, protocolos privados também podem ser empregados, de modo a revelar atributos relevantes do rebanho.

Tais protocolos poderiam envolver informações sobre as características dos animais, por exemplo, mês e ano de nascimento, nutrição, vacinas e medicações utilizadas. Essas informações podem ser relevantes para comercialização em mercados que valorizam conhecer a origem dos alimentos e outros atributos, como “criado 100% em pastagem”. No entanto, o uso de informações como essas deve estar amparado por tecnologia que forneça a devida proteção legal aos dados do produtor. Ademais, necessariamente, o desenvolvimento desses atributos requer coordenação por meio de incentivos financeiros diretamente negociados.

A detenção de bases de dados como essas pode beneficiar o desenvolvimento de mercados e produtos diferenciados por meio da coordenação de sistema de incentivos distribuídos ao longo da cadeia. Mas, para quem está acostumado a transacionar seus lotes apenas com base em volumes e escalas de abate, há a percepção de que tais incentivos possam cair à medida que a oferta cresça.

Ao contrário de outros setores que já possuem diversos mecanismos de coordenação eficientes, como é o caso da avicultura brasileira, na pecuária bovina há espaço considerável para aumentar os níveis de transparência e confiança. A rastreabilidade é um mecanismo relevante que precisa ser desenhado de forma a reduzir as distâncias relacionais na cadeia e aumentar a confiabilidade dos dados que o país apresenta, sejam sanitários, sejam ambientais ou mesmo outros de interesse dos compradores.

Fonte: InsperAgroGlobal