Sem investimentos robustos, ciência agronômica brasileira pode perder liderança em futuro próximo

“Em cinco anos, o Brasil pode perder a liderança na área de pesquisa agronômica, conquistada nos últimos 50 anos”. É o que avalia a pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e membro da diretoria da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Mariangela Hungria, referência mundial em pesquisas ligadas a bioinsumos na soja. Na análise de Mariangela, se não houver investimentos constantes em pesquisa científica, o Brasil pode deixar de ser líder na pesquisa agrícola em condições tropicais, gerando grande impacto no agro brasileiro. Além disso, a falta de investimentos pode trazer ainda mais desafios para a produção de alimentos básicos para a população, impactando na segurança alimentar.

A análise de Mariangela é feita a partir das reflexões trazidas pelo livro “Segurança Alimentar e Nutricional: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome”, que será lançado na capital paulista no próximo dia 18 de abril, às 18h30, na sede da Fundação Bunge. O evento de lançamento será mediado pela presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC), Helena Nader, e terá a participação de Mariangela Hungria, organizadora do livro, Silvio Crestana, pesquisador da Embrapa, e Cláudia Calais, diretora-executiva da Fundação Bunge.

A obra conta com a participação de 41 autores, de 23 instituições científicas brasileiras, que fazem reflexões profundas sobre o papel de todas as ciências no combate à fome que, segundo levantamento da Rede Brasileira de pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN) em 2021 e 2022, atingiu 33 milhões de pessoas. A publicação completa pode ser baixada clicando aqui.

“Enfrentamos duas contradições que precisam ser resolvidas. Primeiro, produzimos alimentos suficientes para alimentar globalmente quase 1 bilhão de pessoas, mas, ainda assim, temos milhões de brasileiros com insuficiência alimentar grave, indicando que não têm acesso seguro a uma única refeição por dia. Segundo, mais de 60% das pessoas que passam fome no Brasil estão na zona rural, onde esses alimentos são produzidos, o que é inadmissível”, explica Mariangela.

Brasil pode perder liderança em pesquisa agronômica

Os investimentos em ciência revolucionaram a agricultura brasileira, que passou de importadora de alimentos na década de 1960, para grande exportadora de grãos e carnes nos dias de hoje. Mas esse histórico pode ser perdido, se não houver investimentos constantes e robustos para o setor.

“Antes, com o uso do melhoramento genético tradicional, levava-se muitos anos para o desenvolvimento de uma nova variedade de planta. Hoje, com as ferramentas disponíveis, esse trabalho é feito de uma forma muito mais rápida. O Brasil avançou muito na pesquisa científica nos últimos 50 anos, mas pode perder essa liderança se não investir em pesquisa e no uso desse tipo de ferramenta”, avalia.

A perda da liderança brasileira para outros países traria grande impacto para o agro brasileiro do ponto de vista econômico e, também, de segurança fitossanitária e dos desafios impostos pelas mudanças climáticas. “Imagine que uma empresa estrangeira desenvolva cultivares tolerantes à seca e que essas cultivares sejam usadas na África e não no Brasil. Ou, então, que apareça uma superpraga e não tivermos pesquisa para vencê-la em condições tropicais. A velocidade que as coisas acontecem nesse setor hoje é muito grande e podemos perder muito com grande rapidez”, afirma a pesquisadora brasileira.

Se, por um lado, a perda de liderança no agronegócio pela falta de investimentos em pesquisa impactaria as divisas do país, por conta das commodities, por outro, ela poderia afetar ainda mais a agricultura familiar. 

“Hoje, mais de 50% dos alimentos que chegam à mesa da população brasileira são oriundos da agricultura familiar. As pesquisas científicas para esse setor basicamente vêm de instituições públicas, por isso, é importante que os investimentos não sejam destinados apenas a pesquisas com commodities, mas também nessa área, fundamental para manter a segurança alimentar. Além disso, é preciso que a agricultura familiar receba amplo investimento para que o produtor possa adotar as novas tecnologias disponíveis, além do fortalecimento de ações de extensão agropecuária e acesso ao crédito. É importante ressaltar que a falta de investimentos na agricultura familiar resultará em alimentos mais caros na mesa dos brasileiros”, diz.

Combate à fome depende de trabalho integrado, interdisciplinar e intersetorial

Para Cláudia Calais, diretora-executiva da Fundação Bunge, o combate à fome no Brasil vai além do investimento em ciência e precisa ser visto como uma ação integrada, com participação da academia, governo, iniciativa privada e terceiro setor.

“Apesar de termos ciência de qualidade, políticas públicas e a maior produção agrícola do planeta, ainda temos milhões de pessoas que não têm o que comer no nosso país. Acredito que isso se deve muito pela nossa incapacidade de trabalhar em rede”, afirma Calais.

Enquanto investidora social, a Fundação Bunge, segundo a executiva, entende que o agro brasileiro, com seus grandes produtores, possui papel fundamental e relevante para a economia brasileira, mas que o trabalho feito pelos agricultores familiares e indígenas são fundamentais para garantir a comida na mesa da população e a preservação das florestas. “Acreditamos que para combater à fome, é preciso o trabalho conjunto entre todos esses segmentos do agro, porque enquanto cada um defender somente seus interesses próprios, não conseguiremos chegar a um bom coeficiente nessa história”, avalia.

Em seu artigo, Calais cita projeto desenvolvido pela Fundação Bunge na região de Canarana (MT), voltado à agricultura regenerativa e de baixo carbono. O Semêa apoia agricultores assentados, produtores rurais, e povos de três Terras Indígenas, das etnias Xavante e Boe Bororo, e tem como premissa integrar todos esses públicos e conectá-los a políticas públicas voltadas à geração de renda digna. Na prática, o projeto disponibiliza tecnologias de ponta na recuperação de nascentes, preservação, reflorestamento, práticas sustentáveis de solo e polinização de lavouras com abelhas para aqueles produtores que não têm acesso fácil a esse tipo de tecnologia.

Para Calais, o agronegócio e as pequenas propriedades rurais, que vivem da agricultura familiar, não são antagônicos. “Resultados de iniciativas da Fundação Bunge mostram que esses dois atores podem ter atuações complementares, com benefícios mútuos. Os povos originários também devem fazer parte dessa integração, já que são os grandes guardiões da floresta em pé. Nossas práticas no campo social mostram que a parceria entre o agronegócio brasileiro, a agricultura familiar e os povos originários é totalmente possível e complementar. Somente juntos eles podem assegurar a segurança alimentar e uma agricultura sustentável e inclusiva”, afirma.

Outro ponto importante do trabalho da Fundação Bunge nesta área, segundo Calais, está na difusão de informações e conhecimentos entre os produtores sobre os alimentos locais, sua sazonalidade e importância dentro da economia local. “Essas discussões sobre a regionalização de alimentos tem favorecido o desen­volvimento de novas cadeias produtivas em Canarana, o que, por consequência, amplia a produção de alimentos, inibe o desabastecimento e controla a subida brusca de preços. O resultado é a garantia do acesso a alimentos regionais contribuindo com a segurança alimentar”, explica.

Fonte: Fernanda Domiciano